Personagem : Ela: >>>>>>>>>>
Mas que raiva. Faço de tudo para criar os melhores momentos, as melhores respostas, afiadas na ponta da minha língua, e....chega na hora....não sou ninguém. Que piada sem graça fui dizer agora...Meu Deus, me belisca..me belisca para eu ter a certeza que essa asneira não tá saindo da minha boca. Vai, apaga...apaga....passa aquele corretivo por cima..Bendito Barthes, maldito Roland....minha língua cheia de ruídos...eu balbucio. Roland, rolandzinho...Devolva-me todo o meu rumor..quero rumorejar como fazia antigamente....
Mas que raiva. Pensei em tudo com bastante antecedência. Ensaiei, gravei, anotei...decorei até em russo o versinho, a fim de, afins..é..é..por fim...afim de você,sem fim,de gravar meu amor por ti, mesmo nessa língua meio rude e aspera. No fim, esqueço que passei as manhãs,as tardes e as noites dos outros dias inúteis que precedem esse aqui, esse dia aqui...essa hora agora, 15:34, que estou aqui...com o texto marcadinho, colocando toda a minha respiração no diafragma. Tenho meu texto ensaiado comigo, olhando no espelho, no banho, no toilet do cinema..em todas as horas vagas, e olha que não faltam horas vagas para você.
(ELA PUXA UM LENÇO DE PAPEL E ASSOA O NARIZ)
Veja só, é ranho....ando muito gripada..Mudança de tempo é assim...Meu Deus! Não acredito que fiz isso. Estupida, estupida...Preparo todo um psicodrama pra conseguir chegar ao meu personagem..respiração...si fu shi pá...si fu shi pá...relaxa, relaxa...nem tudo está perdido. Talvez na viagem narcísica dele ele nem tenha percebido. O que é um ranho, um simples ranhinho, amarelinho no lenço de papel...Si fu shi pá...si fu shi pá...Estou bem melhor..vou começar do começo. É preciso chegar ao ponto...se eu conseguir chegar ao segundo ato, a coisa ganha uma engrenagem...se eu conseguir chegar naquele momento, naquela cena que ensaiei em casa...(RISOS) Aquela parte é divertidíssima...um verdadeiro golpe de teatro...minha mise-em-scene será perfeita. É um momento divino, será a minha glória. Se eu conseguir chegar ao eixo central de minha peça eu consigo fazer com que ele coma na minha mão...(RISOS) Mas...mas antes...mas antes é preciso que eu abra as cortinas...que eu acenda a luz..nem que seja um refletorzinho só, iluminando minha boca,para eu conseguir dizer tudo que ensaiei....se não tiver luz não tem problema...pode ser no escuro, aí sim terei que mostrar todo meu potencial atoral.....mas...mas...se não der para abrir a cortina toda também não tem problema..abre só uma brechinha..assim, de nadinha..de forma que eu consiga chegar o meu braço até seu pescoço, na cena que ele olha para o lago, se encanta com seu encanto – afinal, quem não ia se encantar – e salvar ele de morrer afogado por causa de sua beleza.
Mas que raiva. Eu não consigo. Maldito Barthes, me devolva o funcionamento perfeito da minha língua. Que eu consiga falar tudo que está engasgado aqui, na minha garganta, e não dê nem um sambinha..Mas que raiva. Por que perto dele pareço ser uma total idiota?
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